terça-feira, 6 de março de 2012

A Decomposição do Tempo e O Verdadeiro Coração Denunciador

Enclausurado onde me encontro, aguma presença fantasmagórica me assombra. Não é o vento, e nem a sombra, ou muito menos as cortinas. Algum trinado sinistro, uma fantástica lombra... percebo melhor agora: é uma fonte sonora. Fecho os olhos e me concentro: de onde vem tal tormento? Percebo agora um ritmo, qual maquinário sinistro. Insistente e renitente, um baque seco nas sombras, numa cadência marcial anunciada pelas trompas.
Aguço mais e canto comigo mesmo o ritmo repetitivo... diabos! Diabos! É lógico... é esse maldito relógio! Adornado por sinistra águia e circunvolunções caóticas, anunciando, terroristamente, a indetível marcha das horas. Oras! Que desgraça, agora não consigo mais fechar os olhos! Olho pro centro e vejo os ponteiros a esgrimir contra segundos mortos. Retumbando como um coração, chato como uma televisão ligada no meio da madrugada e contra a qual não se pode fazer nada.
Oprimido pelo silêncio e por um tédio imortal, em nada me ajuda essa insônia e a efervescência cerebral.  Maldito! Desdenha de mim, sorridente. Veja estes bigodes de aço e esse vidro reluzente!
No fundo desse relógio batedouro vejo um rosto: seu sorriso obsceno é o que causa o meu desgosto. Poderia até pensar que me foi dado de propósito... não pra me ensinar as horas, mas para ser uma bomba relógio. Feita pra explodir não a sua estrutura material, mas a matéria abstrata do meu inferno cerebral, com batidas precisas e cirúrgicas no meu peito, me enxendo de raivas e visões lúbricas de pretéritos imprefeitos. Como se fosse um infinito e repetido código morse, que representase uma risada com uma pontada de remorso. Como se me lembrasse, assassinamente, que não voltará, jamais, aquilo que nunca veio, mas nunca me deixou em paz.
Desesperado por ouví-lo, e vê-lo, em vão procuro envolvê-lo numa camisa, pra abafar seu rugido monstrenho, seu maquiavélico desempenho, porém nada o amortiza. É como se a matéria impalpável das batidas comoventes não conhecessem as barreiras desse mundo existentes. Apelo então pro meu pesado e obscuro sobretudo, mas é em vão! Ouço-o ainda, o maldito baque surdo!
Decido então colocá-lo em baixo do meu colchão, mas cada batida dele bate junto com o meu coração. Com a diferença de que meu peito não faz assim tanto barulho. Chego a pensar que esse som pode ser ouvido em todo o mundo. Se os aposentos ao lado por acaso despertarem, poderão descobrir o meu segredo, que eu mesmo só descobri tarde... e sei que é tarde, mas dominado pelo medo e pela revolta, visto este mesmo sobretudo e resolvo dar uma volta. Espero assim, ao menos, poder me livrar da batida infernal. Mas o destino, traiçoeiro, corrobora para o meu mal. Ainda insistentes ouço as batidas esgrimistas do infortúnio. Será que estou louco? De onde vem - de que caralho - esse murmúrio? Será que a noite imortal está impressionando meu peito? Um criminoso, um ancestral morto, ou algum outro sujeito? Não, reconheço-as! Não há dúvida ou mal entendido: é o maldito relógio que por acaso trouxe comigo. Por força do hábito, como o maldito sempre comigo levei, trouxe-o agora e, podes crer, podes crer que me ferrei!
Como um spot celestial de uma comédia divina cujo mote é minha tormenta, tudo o que vejo é a luz desse maldito poste amarelado de mercúrio que torna em sépia minha desgraça cuja trilha sonora é o maldito e repetitivo: Tic Tac.
Sei do que preciso: vou arrancar a pilha! Arrancando assim a alma quero ver se o bastardo respira!
Sacando de um canivete apunhalo então suas costas. Exponho suas vísceras mecânicas, sinuosas e perigosas. Sem mais delongas arranco do maldito o coração. HORROR! Mas que desgraça! O outro, igual a um furacão, permanece redemoinhando e batendo como um sinistro cão que late pela madrugada com um metálico latido. Como é possível? Horror! Nem penso mais e, num instante, pego o maldito presente e esfaqueio seu peito arfante. Arranco-lhe sem cerimônia a geringonça central. Depois, rudemente, as molas, os parafusos, e coisas tais. E lentamente o decomponho, sem saber pra onde isso vai. Aha! Os malditos ponteiros! Não me enxerão nunca mais! Arranco-os, amasso-os, espanco-os, espeto-os nos restos mortais, picoto todo o painel, arranho os vidros e depois quebro-os. E depois chuto-os. E depois cuspo-os e depois ZAZ! Sinto-me tomado por uma epifania, como o prenúncio de alguma paz.
Invade-me então a sensação de ter sido um deus - santo ou pagão - que decompusera e vencera o tempo, subjugando seu próprio tormento! Deixo-me cair no chão, então vencedor e, extasiado, respiro fundo e apuro a audição para ouvir com volúpia o silencio sonoro do meu triunfo!
Mas, como o fantasma de um soldado incasável, ouço uma vez mais o som do melancólico Tic Tac que não parou nunca mais.
E hoje, relendo assim, por caso, outra vez a obra de Poe, tenho certeza de que era um relógio o seu coração denunciador...

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